As escolhas de Sophia
Conheço Sophia desde a sua infância, mas ela surge de forma plena para mim precisamente durante um estágio docente em uma tradicional disciplina optativa de produção de textos em torno da crítica cinematográfica, que ofereço desde 2016 nos cursos de Comunicação Social da UFMG, mas que derivam de experiência profissional anterior no Centro Universitário de Belo Horizonte (UniBH). Com competência, Sophia me ajudou a organizar uma parte da produção discente relacionada a uma das atividades da matéria – o jogo do cinema – realizada desde o início da disciplina, além, claro, de contribuir com um olhar instigante e perspicaz na leitura das críticas discentes, sendo inclusive elogiada por essa atuação.
Assim, é com prazer que aceitei o convite para escrever esse prefácio, pois o vejo como uma espécie de moto contínuo do diálogo então com ela estabelecido através da disciplina. E também como um movimento histórico pessoal: durante anos (até 2004) eu atuei no jornalismo cultural diário de Minas Gerais, produzindo reportagens e críticas, inclusive cinematográficas, no caderno Cultura do jornal Hoje em Dia, cujo editor, Roberto Mendonça, é precisamente o pai de Sophia e foi, ao lado do colega editor Antônio Siúves e tantos outros que não dá pra mencionar aqui, nomes que muito contribuíram para a minha formação como crítico, jornalista, professor, cidadão. Depois de anos a fio tendo meus textos sob o crivo de Roberto, eis que Sophia me convida para a leitura de seus próprios textos – o que então faço com esse misto de emoção, carinho e atenção.
Não é pouca coisa: são quase 400 filmes em 200 páginas! Apontamentos que vão desde clássicos como “Cantando na chuva” ou “Testemunha de acusação” até produções mais recentes como “A voz suprema do blues”, passando pelo cinema mais independente, mas também blockbusters tipo “Pantera Negra” (aliás uma das poucas discordâncias de nota que observei com a autora). E, já que falamos de textos sobre cinema, temos a convergência para outro ciclo afetivo importante que se instaura: o da crítica cinematográfica produzida em Belo Horizonte.
A capital mineira sempre foi pródiga em revelar talentos cinematográficos, sobretudo no campo da crítica – basta lembrarmos das colunas dos jovens modernistas como Carlos Drummond de Andrade no “Minas Gerais” (sob o pseudônimo de Barba Azul ou Antônio Crispim) nos anos 1930, as gerações que se seguiram nos anos 1950 e 1960 como Geraldo Fonseca, Elisio Valverde, Argemiro Ferreira e José Alberto da Fonseca, pela União de Propagandistas Católicos (UPC) e sua Revista de Cultura Cinematográfica (RCC); Jacques do Prado Brandão, Cyro Siqueira, Fritz Teixera de Salles, Newton Silva, Guy de Almeida, José Roberto Duque, Maurício Gomes Leite, entre outros pelo Centro de Estudos Cinematográficos (CEC) e sua Revista de Cinema e, derivados ainda desse núcleo, Ronaldo Brandão, Oscar Lobenwein Filho e Victor de Almeida na publicação Claquete.
Em paralelo, jornais e revistas mineiros ampliavam os espaços para a crítica cinematográfica e acabaram acolhendo, sobretudo a partir do final dos anos 1960, aliás, muitos desses nomes, além de outros como Carlos Denis Machado, Flávio Pinto Vieira, Paulo Arbex, Paulo Augusto Gomes, Mário Alves Coutinho. A página de Cyro Siqueira no Estado de Minas, por exemplo, tornou-se tradição na publicação. Nomes que inspiraram gerações ainda vindouras e atuantes de meus contemporâneos como Marcelo Castilho Avellar, José Zuba Jr., Alécio Cunha, Fábio Leite, Ataídes Braga, Paulo Henrique Silva, Marcelo Miranda, Pablo Villaça, Adilson Marcelino. É sempre curioso perceber a onipresença da crítica no meio impresso, sendo poucos os exemplos no rádio ou TV – exceção feita ao Cine Magazine, da Rede Minas, apresentado por Ana Luísa Alves, que combinava o texto ensaístico de Paulo Augusto Gomes e Mário Alves Coutinho às novidades e lançamentos das salas de cinema. A Rede Minas, como aliás se verifica em outros exemplos de emissoras públicas, sempre se notabilizou por uma janela mais generosa para a reflexão cultural. No caso do cinema, na mesma emissora, vale ainda lembrar o programa Curta, com Mariana Tavares, e Cinematógrafo, com Fernando Tibúrcio, sendo este o único ainda em exibição.
Mas foi precisamente por ali, em meados de 1997, quando surgia o Cine Magazine, que a crítica cinematográfica passou a vivenciar, cada vez mais, a experiência de migração do suporte impresso do jornalismo diário para o suporte eletrônico – no caso, e sobretudo, a internet. Esses primeiros decênios de transição dos anos 1990 para 2000 marcou uma explosão de revistas eletrônicas de cinema em todo o país, como a Cinética, CinemasCópio, Cinequanon, Contracampo. Naquele mesmo ano de 1997, por aqui Pablo Villaça criava o Cinema em Cena, que segue até hoje. Dez anos depois Marcelo Miranda, Rafael Ciccarini, Mariana Souto e Ursula Röesele estão entre os fundadores da Revista Eletrônica Filmes Polvo, da qual também estavam eu próprio e o escritor Leo Cunha, além de nomes que depois também seguiram para a realização, como Gabriel Martins, João Toledo e Leonardo Amaral. Todos também testemunhando outro processo de migração na capital mineira: do cinema de rua para os shoppings e, nos tempos atuais, o cinema no espaço privado da casa. Discussão que, embora possa remeter aos tempos dos aparelhos de videocassete e DVD ou da TV a cabo, acentuou-se com a combinação dos serviços de plataforma de streaming com os equipamentos disponíveis e, sobretudo, em tempos de isolamento social e pandemia – ao ponto da própria Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood aceitar as produções em streaming como concorrentes ao prêmio máximo do mercado do setor.
Esta breve/longa digressão é apenas para, então, pontuar esse outro ciclo afetivo: a chegada de Sophia Mendonça ao terreno da crítica belorizontina marca mais um nome nessa importante trajetória. Nascida em 1997, faz parte portanto de uma nova geração que certamente cresceu lendo – e em seguida publicando – textos nesse ambiente eletrônico de alcance universal. E, como visto acima, em uma história notadamente masculina, o texto de Sophia pode permitir outros olhares, outras evocações.
As críticas foram recolhidas durante estes anos de produção em diversos meios, sobretudo eletrônicos, como blogs e sites diversos. São textos diretos, com três parágrafos em média, trazendo uma cotação do filme em uma nota máxima de 10. Bem diferente, por certo, dos longos e memoráveis ensaios típicos da Revista de Cinema ou mesmo de textos publicados pelas revistas eletrônicas de cinema citadas anteriormente. Isso porque, além dessa possibilidade, sabemos que a internet também seguiu, se na verdade até mesmo não acentuou, as formatações mais clássicas do texto de resenha e até mesmo do texto de serviço do jornalismo cultural: aquele mais rápido, curto, imediato, espremido pelo tempo e pelo espaço.
É nessa perspectiva que o leitor deve entender esta publicação: a de um guia – tanto no sentido de um roteiro, uma lista organizada de produtos similares, como aquele que conduz, inicia um princípio de conversa, um serviço opinativo - em que a autora prefere apostar na vastidão de primeiras impressões de cententas de produções do que na imersão detida, minuciosa e ensaística de poucas dezenas. Assim, por exemplo, o leitor, ao invés de derivar ad infinitum na tela de sua plataforma de streaming procurando um filme, veja antes se Sophia tem a dizer algo sobre ele. Ou simplesmente, o processo inverso: acolha alguma sugestão da autora como ponto de partida para assistir esse ou aquele filme. Deixe-se levar pela guia de Sophia.
Mas atenção: o fato do texto ser curto e rápido não quer dizer, obviamente, que seja raso ou fútil. Mesmo espremida ali entre poucos parágrafos, o olhar crítico, o estilo, a opinião ficam patentes e, no caso das críticas de Sophia, por exemplo, a evidência do olhar atento da autora não só sobre a atuação, mas também em outros elementos caros à produção fílmica - direção de arte, trilha sonora, roteiro, fotografia etc - como na passagem “um ponto que chama muita atenção neste filme é algo que costuma ser subestimado no cinema: a mixagem de som. Aqui, ela representa um esforço bem-sucedido ao trabalhar com maestria os ruídos, respirações, gritos, diálogos e a aterrorizante trilha sonora instrumental. Esta, inclusive, tem um papel fundamental para estabelecer a tensão da presença do assassino, assim como os movimento de câmera sob a perspectiva dele.” Ponto positivo para a autora, em que pese, nas críticas – majoritariamente, mas não sempre – a ausência do nome desse ou dessa profissional por trás desse destaque generosamente apontado e lembrado por Sophia. (Ah, não vou dar spoiler sobre os filmes dos quais retiro as passagens que destaco aqui. Deixo para o leitor inferir ou buscar...)
Em textos curtos, sobretudo de natureza opinativa, a ironia sempre emerge como essencial para se estabelecer o juízo e a argumentação – e Sophia, claro, não deixa de utilizá-los, como nas passagens: “O trio de atores centrais é bastante simpático, o que não é sinônimo de boas interpretações”; “este é um exemplo de filme em que a boa escolha do diretor salva a produção do fracasso”; “é uma pena que o filme saia tão prejudicado por seus problemas na adaptação, que o fazem ser tão vazio quanto a vida de seus protagonistas.”
É claro que não só o elemento irônico, mas também o jogo de palavras torna-se outro recurso importante nessa circunstância: “o recorte na vida da personagem de Gaga é interessante ao mostrar que o sucesso não garante o equilíbrio (como podemos observar por seu par romântico), mas, que no caso da personagem dela, o equilíbrio é o que garante o sucesso” ou ainda “mesmo sem se aprofundar muito no assunto, o filme traz aquele velho questionamento sobre qual fato é mais importante: o portador de Alzheimer não se lembrar mais da outra pessoa ou a outra pessoa se lembrar dele”.
Também é interessante demarcar como mesmo o texto crítico de Sophia encontra também alguns movimentos em que se expande para além da própria análise fílmica, procurando alcançar e incorporar outros patamares e questões, obviamente caros à autora, que então também se revela por esses momentos, como em “a obra traz oportuna reflexão para os dias atuais. Ela nos revela que ter valores decentes não significa algo positivo quando isto nos gera uma revolta que é canalizada para o ódio. Já o amor é o que nos torna capazes de ter maior discernimento, enquanto a raiva 'germina'” ou em “Daisaku Ikeda: as pessoas não são nobres desde o nascimento, mas se enobrecem através de suas ações. As pessoas não são medíocres desde o seu nascimento, mas tornam-se assim através de suas ações. Se existe alguma diferença entre as pessoas, então essa diferença está somente nas suas realizações”.
Há até mesmo passagens interessantes de metalinguagem, em que Sophia reflete sobre dilemas e questões caras ao ofício: “foram muitas as vezes nas quais (...) eu escrevia alguma coisa em meu bloquinho de anotações para logo depois perceber que essa ideia escrita não fazia muito sentido. E é esse um dos grandes méritos do longa: fazer com que o espectador não entenda tudo que vê na tela mas sinta vontade de compreender e decifrar a obra à qual está assistindo” ou em “mas e se não houver espectador? O filme nos faz constatar, com tristeza, como os chamados filmes de arte são desprezados pela maior parte do público.” e, por fim, este outro exemplo: “poucas coisas, no mundo do cinema, são tão boas quanto assistir a um filme que faz pensar e se mantém na cabeça de quem o assistiu por um tempo maior que o de sua projeção. Porém, certo é que, de vez em quando, precisamos relaxar e, para isso, recorremos a filmes cujo único objetivo é entreter.”
Ou seja, como toda pessoa crítica, ela expressa uma visão de mundo e, claro, não esconde preferências, seja no campo da atuação, em que emergem os filmes protagonizados por Lindsey Lohan, Drew Barrymore, Anna Faris, Jude Dench, Anne Hathaway, Jennifer Lawrence, Whoopi Goldberg e Meryl Streep (Adam Sandler, por sua vez, coitado, quase sempre se mete em produções que são, no entender da autora, verdadeiras “roubadas”) ou seja no campo da discussão do gênero cinematográfico. Aqui é curioso perceber como para Sophia torna-se um aspecto problemático, na maioria das vezes, os filmes que não decidem por onde se enquadram: se como comédia, drama etc. Por outro lado, evidencia os parâmetros, clichês e rupturas como fios de análise para cada um destes gêneros, sobretudo para o terror, a comédia romântica ou mesmo representações estereotípicas como as princesas.
Costumo dizer que um bom texto crítico é aquele em que você estrutura pedindo um aparte, ou seja, um AP-AR-TE. Explicando ainda mais: uma APresentação, seguida de ARgumentação e um TÉrmino. Não importa se um longo ensaio ou um apontamento rápido, a crítica deve se apresentar trazendo logo de cara as informações essenciais sobre a produção e o juízo, a opinião geral (que também se expressa iconograficamente de várias maneiras: bonequinhos, estrelinhas, tomates e, aqui, como dito, números) para em seguida exercitar a sua argumentação, a parte mais nobre e generosa da crítica, que é, afinal, compartilhar com o leitor o percurso de seu juízo, ou seja, quais elementos percebe e destaca na produção para que, convocados no texto, justifiquem a opinião com a qual abre ou marca sua crítica? E assim chegamos ao parágrafo final, do término, conclusão do texto, em que as razões da opinião emitida lá no início são reforçadas e, claro, outras impressões, juízos, qualidades e problemas podem ser rapidamente enumeradas, porque percebidas, ainda que não desenvolvidas pela necessidade de encerramento do texto por razões muitas vezes de tempo e ou espaço. Claro que aí, o espaço generoso de um ensaio permite talvez o esgotamento ou ao menos o maior investimento de todas essas impressões que “sobram”. Mas não numa resenha ou postagem diárias. Sobretudo, aqueles que se tornam ainda menores e referenciais, como os de um projeto editorial como o guia aqui proposto no qual o ritmo de leitura tende a ser mais hipertextual, pulando obras e páginas, do que propriamente lido na sequência.
Por isso, não (mas também) por acaso vamos navegar pelos apartes cinematográficos recolhidos pela autora, sabendo que qualquer escolha de Sophia será sempre difícil. E considerando que, certamente, gostaríamos de ler a opinião dela sobre outros filmes ou ainda querer “ouvir” um pouco mais sobre o tópico que pontuou rapidamente em alguma crítica aqui presente, seja porque concordamos ou discordamos. Bem, se isso acontecer contigo, como aconteceu comigo, é sinal de que o guia funcionou, mas sobretudo a crítica também: concorde ou não com o argumento, ele foi estabelecido e a conversa se faz, esperando sempre uma próxima sessão – e um próximo aparte!
Nísio Teixeira é Professor associado vinculado ao Departamento de Comunicação Social da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (DCS/Fafich/UFMG) desde agosto de 2010. Pesquisador Permanente do Programa de Pós-graduação em Comunicação (PPGCOM/UFMG) na linha de Textualidades Midiáticas. Coordenador do Colegiado e presidente do NDE do curso de graduação em Comunicação Social da UFMG entre junho de 2012 e julho de 2016. Subcoordenador do mesmo curso entre 2021 e 2025, quando assume coordenadoria pro-tempore. Possui graduação em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (1991) e mestrado pela Escola de Ciência da Informação da Universidade Federal de Minas Gerais (1999), onde também concluiu doutorado em 2008. Ex-professor do curso de Jornalismo da Pontifícia Universidade Católica (PUC-MG: 1997 a 1999) e do Centro Universitário de Belo Horizonte (UNI-BH: 1999-2009). Jornalista, com ênfase na área cultural (e nesta, com destaque para o cinema, a literatura e a música),com décadas de experiência entre textos, políticas públicas e projetos de pesquisa científica voltados para essa área. Professor universitário na área de Comunicação, nível Graduação, desde 1997, e, em nível Pós-Graduação, desde 2001 - atuando, no caso específico do cinema, de 2004 a 2010, nos dois níveis. Participou de mais de 100 bancas de trabalhos de conclusão de curso, tendo supervisionado e/ou orientado outra centena. É co-autor de livros, autor de artigos acadêmicos, várias notícias, entrevistas, crônicas e reportagens em jornalismo, além do bloco Batuque de Outrora, no programa Batuque na Cozinha e do Conte uma Canção, ambos transmitidos pela Rádio 104,5 UFMG Educativa e que integram o projeto de Extensão Aqui e Outrora, um dos quatro agraciados com o Prêmio Destaque na UFMG em 2013. É membro dos grupos de pesquisa Escutas (Sonoridades, Comunicação, Textualidades e Sociabilidade) do departamento de Comunicação Social da UFMG e também do Mopri (Mídia, Opinião Pública nas Relações Internacionais) de caráter interinstitucional e AMIS 2021-2025 (Brasil-França). Integra ainda o U-40 World Forum para promoção da Convenção da Diversidade Cultural http://u40net.org/. (Ilustração: Mário Vale)